Última edición Staff Links Contacto Instituto Clínico de Buenos Aires Seguinos en FacebookSeguinos en Facebook
Consecuencias
 
Abril 2008 | #1 | Índice
 
Estamira, nova forma de existência - Parte I [1]
Célio Garcia
 

EstamiraEstamira é portadora de sofrimento mental. Psicótica, ela foi atendida pelo serviço de saúde mental. Medicada, ela está sob efeito de psicofármacos.

Mas, isso não diz tudo. Todos esses procedimentos não esgotam a questão suscitada por Estamira. Há algo mais. Estamira faz sua trajetória, ela inventa seu território, e por onde passa com ela leva seu sofrimento mental que dura. Ele tem uma duração, a duração da vida, mas não é crônico.

A vida passa, mesmo que seja um tempo lento (como é o tempo dos pobres). Senão vejamos.

Ela não permaneceu internada por longo período, nem em hospital, nem em unidade de substituição (lar abrigado ou moradia terapêutica).

Ela foi atendida num momento de urgência, é bem verdade, mas ela não cumpriu a tríade "urgência - emergência - ambulatório". Foi outra a temporalidade que ela estabeleceu.

O termo território serve para situar por onde andou Estamira. No seu caso, o território é físico, socio-comunitário (laços, família, companheiros no lixão), território discursivo (delírio de fundo religioso). Tudo isso formava o seu quotidiano. Vamos chegar a uma Clínica para Estamira.

Primeira anotação à margem no nosso caderno, no serviço de saúde mental onde ela foi atendida: o sofrimento de Estamira teria sido bem maior se ela permanecesse adstrita ao serviço, seu perímetro, suas regras, seus procedimentos, sua temporalidade (Urgência - Ambulatório - Convivência).

Segunda anotação: melhor teria sido se o lugar onde está localizado o serviço de saúde mental abrisse espaço incorporando o território de Estamira; permeável, ele se deixasse existir sem as imposições, restrições, marcações (horário, divisão em especialidades) que esperam o paciente e o profissional quando chegam ao serviço de saúde. Mas, isso teria sido muito difícil.

Eu bem sei. Aliás, sem percorrer o território de Estamira, não corremos o risco de ser surpreendido por Estamira. Esse território tem sua angústia, é bem verdade, mas, para chegar até lá, temos que ir para além do bio-médico, onde ficam as "novas formas de existência", uma Clínica para Estamira.

 

 
Um filme
 

A anotação acima diz respeito ao filme documentário brasileiro "Estamira" que conta a história de uma portadora de sofrimento mental na baixada fluminense (próximo ao Rio e Janeiro) que tirava o sustento para sua vida como catadora no lixão. Ela esteve internada por ocasião da crise, sendo logo liberada, como preconiza a Reforma Psiquiátrica. Só que o diretor Marcos Prado sem preocupação direta com nossos debates, nos mostra uma "nova forma de existência" para uma pessoa que não passa por hospitalização em grandes ou pequenas unidades, nem por contenção a não ser a medicação posta a sua disposição pela gama de psicofármacos existentes atualmente.

Além dessa idéia "novas formas de existência", trago consideração que me tem sido útil no trabalho. Estamira me leva a três anotações:

1) o filme de Marcos Prado nos mostra o território de Estamira, ou Estamira em seu território do qual ela não saiu.

2) A experiência da carência criou condições para a criatividade de que fez prova Estamira na sua forma de existência.

3) A necessidade em pensar uma Clínica da Carência.

 

 
Por uma clínica da carência:

1. A perda da experiência na modernidade.

2. Os irregulares, aqueles que dão testemunho da perda, ao mesmo tempo em que nos dizem como continuar.

3. O resto, o fragmento, o refugo, de que se apropriam os irregulares.

4. ACS: personagem crucial para abordar a carência, sua patologia.

5. A lógica de que faz uso o irregular: a não predicação.

 

 
A modernidade e a experiência

[Para este parágrafo tive como referência Adorno].

O recorte que ponho em destaque, aponta para a modernidade e consequentemente a perda do que chamávamos experiência.

Um primeiro testemunho, é encontrado no poeta que espairecia nas ruas conhecidas de todos e por ele preferidas, agora na era da nossa modernidade, pego de surpresa passava ele a ser o flaneur passivo na multidão alvoroçada (Vai trabalhar desocupado! Passou a dizer a multidão).

A escrita do poeta passou a ser, com o acontecimento modernidade, resultado de uma luta, um combate, um confronto com os inumeráveis choques sofridos pelo homem na grande cidade. O poeta responde com um grito na tentativa de "apropriação da irrealidade".

O poeta foi um dos primeiros a ter consciência da mudança de estatuto na sociedade moderna caracterizada pela privação da experiência. Agora não mais experiência, muito menos vivência. Perdição da realidade, experiência cada vez mais esvaziada, real impenetrável, só restavam a mercadoria e o alvoroço das grandes cidades.

Com a perda da experiência perdemos a rememoração, já não há mais lugar para as festas, nem tradição. O slogan resgate da tradição, nos deixa desconfiado de que alguma coisa já não existe, já foi deixada para trás. O folclore tem um ar de programa do governo, museu de costumes.

Lembro esse monumento próximo da cidade de Hamburgo na Alemanha, feito para ser um lugar de memória do desastre obscuro que foi a II guerra mundial; a cada ano o monumento se enterra alguns centímetros, desaparecendo em nosso horizonte, se afastando de nossa convivência.

Foi atual o artista ao nos fazer entender que os monumentos representam a memória, a tradição, a experiência que pouco a pouco desaparecem.

Os primeiros pacientes de Freud falavam dessa conflagração entre modernidade e experiência que já não encontra. Como sabemos, frequentemente eram esses pacientes do Dr. Freud poetas e artistas do início do século XX confrontados pela modernidade.

A Psicanálise nos momentos de melhor inspiração sempre esteve disposta a considerar a psicose como experiência radical, por isso mesmo exposta a desvios da razão, sem que necessariamente tivéssemos que ver nessa experiência sinais de déficit ou defeito.

Freud pensava que o delírio era uma tentativa de cura, nova ordenação do mundo a partir de premissas inusitadas. Vamos considerar o delírio a partir de um livro "Lire le délire. Aliénisme, rhétorique et littérature en France au XIXème siècle" de Juan Rigoli : a produção na psicose.

Assim era o caso do presidente Schreber, nomeado para alto grado na instância judiciária, cujas memórias foram objeto de leitura por parte de Freud e Lacan no campo da Psicanálise; sem esquecer outros leitores como Elias Canetti, e filósofos ou literários que viram no texto de Schreber um enredo sobre o que acontecia na época, visão de acontecimentos políticos, históricos.

Pareceu-me interessante ler o livro de Rigoli, pois sua documentação expõe as tentativas dos primeiros psiquiatras de darem conta do fato delirante. Uma primeira tentativa consistiu em adivinhar o pensamento do delirante, "ler no pensamento" do alienado.

Nós que viemos depois de Freud, já não tínhamos essas referências e entendemos como sendo simplesmente o conhece-te a ti mesmo o que levava aquelas testemunhas da modernidade a procurarem Dr. Freud. Essa atitude, essa disposição de volta para si mesmo não sobreviveria à implantação hegemônica da modernidade.

Tampouco a volta para si do conhece-te a ti mesmo daria conta do que será a aventura empreendida por Dr. Freud, já que a Psicanálise não se reduzia a um experimento de pensamento, expressão encontrada em filósofos cuja reflexão os levava a questões na vizinhança da Psicanálise.

Até chegarmos a Foucault que nos propunha como saída, considerar a experiência como contrapartida da ciência, ciência que havia levado á perfeição a experimentação, retirando dela, precisamente, seus aspectos subjetivos.

A experiência da loucura em nossa modernidade já não existe. As instituições especializadas, os especialistas, cada um em sua especialidade (doença mental, velhice, deficientes físicos) tratam de isolar e proteger tais experiências retirando-as do olhar incomodado do público.

Voltemos a nossas questões atuais: vejam o que aconteceu com Lugares de memória, assim chamados na França, em comemoração de fastos da República, do Antigo regime.

Recentemente li que teóricos já propunham que poderíamos deixar para a história o encargo de registrar esses fastos e nefastos.

Tratava-se de um debate sobre o que fazer com a memória de Auschwitz.

Se já não há experiência, não há tradição, nem tampouco sabemos mais o que nos é comum. Até bem pouco tempo, sabíamos o que tínhamos em comum com as pessoas com quem nos relacionávamos, ou que conhecíamos, ou que reconhecíamos como sendo nossos... (faltou-me a palavra). Fiquei impressionado com a pobreza do meu vocabulário no assunto.

Depois retomei a respiração, e disse que talvez nenhum dos termos que me ocorreram para preencher o vazio deixado na minha frase me parecia hoje em dia indicado.

Antes qualquer um de nós saberia dizer "são nossos parentes" (laços familiares), "somos conterrâneos" (laços de nacionalidade, de origem geográfica), "pertencemos à mesma religião" (origem religiosa ou cultural), "estamos inscritos no mesmo partido" (logo lembrávamos as campanhas que havíamos feito juntos, em prol de um mesmo candidato, de um mesmo programa político, do mesmo sindicato).

Até serviço militar servia para nos fazer sentir que tínhamos algo em comum com tal pessoa conhecida na idade jovem agora reencontrado na idade adulta.

Em vez dessas referências, somos atualmente chamados a responder pelo nosso

em-comum através de (1) a mídia e sua pesquisa ibope, (2) através do espetáculo propiciado pelos políticos em vésperas de eleição, (3) através de apelo vindo de dois campos (nações do bem e nações do mal) que se formam diante de nossas mentes e corações estarrecidos, (4) através do discurso ecológico apressadamente formulado em tom de ameaça, (5) quando se trata de prevenção em saúde pública que nos identifica simplesmente pelo sintoma ou pelo atestado de uma doença.

Nenhum dos apelos nos convence.

Desacreditados o social e seu laço, ficou o vazio, e com o vazio descobrimos novas dimensões para o em comum. O despojamento dos significantes que pesavam em nossas identificações nos libera para uma outra dimensão.

Vamos anotar a pergunta: em que medida a nomeação/significantes identificatórios estão comprometidos com a lógica da predicação, com seus rótulos, atributos, diagnósticos?
Poderíamos chegar a uma prática política / clínica sem estarmos ancorados na nomeação/significantes identificatórios ?

A experiência e as minorias: a solução comunitarista.

"Agora eu sou alguém!" depois que começou a frequentar tal (igreja) comunitarista.

"O pastor e cada um dos presentes zelam por mim", acrescentava.

Declarações semelhantes podemos colher junto a participantes de grupos de atendimento comunitarista como AA para alcoolistas, assim como para drogaditos; a mesma declaração é colhida por parte de apenados em prisões. Temos que admitir que há algo de verdadeiro em tais declarações. Vamos examiná-las com a atenção que elas merecem.

Ao tratar como pura diferença os particularismos representados pelas minorias, logo reificadas pelo reconhecimento a elas atribuído, a modernidade contemporânea consegue homogeneizá-los, ao mesmo tempo que reparte a situação em sub-conjuntos articulados burocraticamente.

O saldo da operação vem a ser um "novo contratualismo universalista" pretensamente garantidor de uma realização de totalização (mundialização).

Quanto a nós, desde sempre soubemos da tensão entre universal e particular; soubemos do lugar negativo cuja marca é deixada pelo particular, se pretendemos defini-lo.

Soubemos que ao negar o universal, o particular o realiza, demonstrando assim impossibilidade de totalização.

Qual é o real unificador dessa promoção da virtude cultural dos subconjuntos oprimidos, desse louvor da linguagem dos particularismos comunitários (os quais em ultima instância remetem para além da nação, da religião ou sexo)?

O unificador é evidentemente a abstração mercadológica, cujo falso universal aceitaria perfeitamente particularidades comunitaristas.

E não será renunciando ao universal concreto das verdades para afirmar o direito das "minorias" raciais, religiosas, nacionais ou sexuais, que se amortece a devastação já causada. A lógica identitária que sustenta as minorias, longe de se orientar em direção a uma apropriação dessa tipologia, não propõe senão uma variante do véu de encobrimento capitalista. Ela polemiza contra todo conceito genérico da arte e o substitui, por sua própria conta, pelo de cultura, concebida como cultura do grupo, cimento subjetivo ou representativo de sua existência, cultura destinada a si mesmo e potencialmente não universalizável. Ela não hesita, além disso, em deixar claro que os elementos constitutivos dessa cultura não são plenamente compreensíveis, a não ser sob a condição de uma pertinência ao subconjunto considerado. De onde os enunciados catastróficos do gênero: só um homossexual pode "compreender" o que é um homossexual! Um "careta" não sabe o que seja consumir drogas!

Com esses dois depoimentos, batemos às portas da clínica.

Os consumidores de sintoma ("consumos fatídicos") encontrados em grupos AA, drogaditos, se acomodam ao paradigma das leis do mercado. Assim também os profissionais encarregados do atendimento aos que os procuram. Com o abandono dos velhos ideais, o progresso das ciências e seus novos objetos tecnológicos parecem promover o imperativo de usufruir do gozo do consumo ao sepultar a especificidade do desejo.

Com isso, a repartição burocrática do espaço subjetivo através de critérios estranhos à situação tem conseqüências na prática clínica. O particularismo e sua gestão comunitária têm trazido conseqüências notáveis ao nível do atendimento clínico, quando resulta em repartição do espaço subjetivo em função de critérios particularistas (falsamente identificatórios, ou identificatórios as custas de rótulos, ou diagnósticos que valem como estigmas ou emblemas classificatórios). Esvaziam-se as questões trazidas pelo público que procura o profissional "psi" ao desviar-se a demanda enigmática, orientada agora em termos unicamente de queixa. Refiro-me expressamente aos grupos de atendimentos denominados grupos de portadores de LER (lesão por esforço repetitivo), grupos de toxicômanos, grupos de hipertensos, grupos de diabéticos, grupos de mães em tais ou quais condições...e assim por diante.

Quanto às minorias, trata-se de um problema delicado, pois não basta passar de uma situação de exclusão a uma "autonomização comunitarista". Há de fato, na matéria, duas concepções: uma pensa a questão visando a consolidação do dispositivo comunitarista, o que certamente traz efeitos positivos que tem a ver com defesa de direitos e acompanhamento de práticas sociais discriminatórias.

Ao mesmo tempo, essa concepção traz um inconveniente fundamental. Transforma o país em um mosaico de minorias, onde cada um defende sua identidade sem que isso traga melhorias ao que poderíamos chamar igualdade política no espaço público. Defender direitos, a própria identidade, sem articulação maior quanto ao espaço de decisões gerais, não garante a defesa dos direitos das minorias, inclusive os direitos culturais, pois não a inclui uma circulação geral onde se situa a prática política.

De que, efetivamente, se compõe nossa atualidade?

O cruzamento entre a ideologia culturalista e a concepção do homem como vítima faz sucumbir todo acesso ao universalismo, o qual não tolera ser consignado a uma particularidade, nem guarda relação direta com o estatuto dominante ou típico de vitima.

A lógica globalizante e o fanatismo da identidade associados, graças a uma inseparável cumplicidade, constrói a comunitarização do espaço público, a renúncia à neutralidade transcendente da lei; com isso, o Estado pretende ser o guardião da identidade atestada daqueles de quem ele se encarrega. De um outro lado, há um processo de fragmentação em identidades fechadas, implementado pela ideologia culturalista e relativista que acompanha essa fragmentação.

Esses dois processos são perfeitamente intrincados, pois cada identificação (criação ou montagem de identidade) cria uma figura que fornece matéria para seu investimento pelo mercado. Nada de mais cativante para o investimento mercadológico, nada que ofereça mais para a invenção de novas figuras da homogeneidade monetária que uma comunidade e seu ou seus territórios. É preciso a aparência de uma não equivalência para que a equivalência seja, ela própria, um processo. Qual melhor fonte de investimentos, inesgotável que é para o mercado, que o surgimento na cena, em forma de comunidade reivindicativa e de pretensa singularidade cultural, das mulheres, dos homossexuais, do grupo de jovens, dos que foram classificados como "terceira idade", dos toxicômanos? A cada vez uma imagem social autoriza produtos novos, lojas especializadas, centros comerciais adequados, rádios, TVs, redes publicitárias direcionadas para seus nichos, e enfim, "debates de questões sociais" em horários de grande audiência.

*******************************

Há lugar ainda para a clínica? Seria possível uma clínica da carência, da precariedade (inventiva e criativa de novos usos) em contrapartida à posição de vítima ou miserabilidade? Para tanto, tratar-se-ia de fazer surgir significação de fragmentos em pedaços resultantes de destruição da experiência.

Em que podem nos interessar esses fragmentos?

Sendo o inconsciente atemporal, as conexões entre um fragmento e outro não obedecem a restrições de tempo ou marca cronológica; podemos acrescentar que (nos sonhos, por exemplo) referidos fragmentos são provenientes de diversas origens. Na verdade eles são reempregados, ou se preferirem reciclados a cada vez.

Não há, portanto cadeia, mas conexão entre os elementos ou fragmentos.

A Prática política igualmente, é ela formada de seqüências finitas (vejam a contrapartida memória e/ou lugares de memória para comemorar fastos e nefastos de antigos e outros regimes), seus recursos provem do reemprego de elementos de diversas fontes, tal, como no inconsciente.

Em vez de identidade, de grandes oposições, de ideais, trabalhamos com a mínima diferença; a identidade tem sido fonte e origem de descriminação, segregação, precisamente a partir de critérios trazidos pela técnica em seu estágio atual.

O sujeito perdido na grande cidade poderá sempre ser confrontado à resposta que o constituiu como sujeito. Ele já deu a resposta quando nós o atendemos. Nesse item encontramos o tema da responsabilidade, mas agora liberado da sua carga moral, do seu feitio jurídico.

 

 
2. A "irregularidade" do grafiteiro-pichador: o corpo da sua escrita

No século XIX (precisamente, na época em que a Modernidade se impunha fazendo desaparecer a experiência) a arte dos loucos, a arte das crianças, as artes ditas primitivas, eram reunidas num conjunto onde os críticos viam deficit e maladresse.

O conjunto formado por essa produção era avaliado de acordo com normas e cânones que deveriam nos fazer ter acesso ao belo através de julgamento estético universal, privilégio de quem havia passado pela experiência agora em fase de destituição.

O arcaico, o selvagem, o infantil, repentinos arroubos regressivos e/ou balbucios de um início por ser vivido, eram considerados por uma Europa colonialista, em oposição a evoluído, civilizado. Produções artísticas devidas a portadores de sofrimento mental nos levaram a reconhecer por vezes, o gênio na loucura. Essa produção era encontrada não somente em hospitais e asilos, mas era devida a pessoas por vezes excêntricas e marginais, frequentemente mal adaptadas à sociedade tal como ela era.

Algumas exposições ousaram mostrar o novo acervo. Surge então uma questão:

Que classificação adotar na preparação de um catálogo como é de praxe nas circunstâncias?

A reviravolta se deu no século XX quando passamos a valorizar a imaturidade, o inacabado, o primitivo.

Em 1921, em Frankfurt "os desenhos patológicos" foram agrupados em três grupos:

1) quadros que lembram obras expressionistas;

2) quadros que lembram desenhos de criança;

3) quadros que lembram obras de civilizações extintas.

No entanto, a classificação deixava a desejar. A analogia com arte primitiva não satisfaz, pois ela é sem fundamento; quanto à arte moderna, seja ela expressionista, cubista, ou futurista, obedece ela à lógica, atende a alguma problemática, inscreve-se por seu lado como uma resposta plástica na história do academismo europeu.

O termo "arte bruta" já foi lembrado; pareceu-me ele mais próximo do que encontramos na produção gráfica de grafiteiros deixados nos muros e painéis, estes últimos quando disponibilizados por alguma instituição.

 

 

Grafiteiro / Pichador. Um caso para ilustrar

Examino o caso de um grafiteiro/pichador levado por necessidade interior incoercível que o fazia produzir inscrições que ilustravam situações traumáticas vividas por ele, tomado por impulso que invade seu corpo dando a ele elasticidade e agilidade insuspeitadas. Os rabiscos carregados habitados por expressão plástica inusitada, inseparáveis de uma cena sem palavras, articulam grafias e ícones, com tendência a ocupar todo o espaço disponível, criando proliferação inconveniente.

Tal arte eu a colocaria do lado dos "irregulares", e nunca do lado das crianças ou dos primitivos, como havia pensado o crítico de arte diante das obras de arte chamada "irregular" no século XIX.

Espontâneos e instintivos lá estão os irregulares na periferia das grandes cidades, nos arrabaldes do planeta, frequentemente ligados à tradição oral, à música hip-hop ou rap, à dança. No caso do Brasil encontro no ballet da capoeira de Angola a expressão plástica cuja partitura seriam os grossos riscos, traçado enfático, deixados nos muros, paredes, monumentos (infração considerada em nosso código penal passível de medida socio-educativa, tal como prestação de serviços à comunidade), monumentos cuja memória sem pensamento já não é reconhecida pelo jovem grafiteiro/pichador.

A abordagem aqui proposta, por enquanto denominada "arte irregular", ao ser pensada pode retirar o jovem de seu gueto, minoria, ou bando como queiram chamar; retirar quer dizer lançá-lo em direção ao grande movimento de produção artística que vai pelo mundo afora. Até então eles eram e serão mantidos na periferia das cidades, mesmo freqüentando concursos ou cursos que viesses regularizar a atividade de grafiteito.

O mesmo diria em se tratando do catador de papel a quem se desse como referência o grande movimento ecológico que perpassa o mundo, desde a Alemanha onde o Partido Verde (Die Grüne) já fez parte do governo de coalizão, até o Green Peace em suas intrépidas aventuras no mar, nos ares, na terra. Uma exposição de objetos reciclados não basta; ficam faltando uma clinica e seu pensamento.

 

 
3. O resto, o fragmento, o refugo

Estamira, com quem fomos aprender os primeiros passos da presente reflexão, era catadora de lixo no Aterro Sanitário, de onde tirava seu sustento, onde encontrava seus companheiros e com eles praticava sua filosofia. Vamos refletir sobre essa face de Estamira.

Certa vez dando supervisão para profissionais psi em Unidade de reciclagem de material coletado na grande cidade, anotei:

Estamos comprometidos com maior eficiência (Triagem e Gestão do material coletado, a ser reciclado), mas não esquecemos a "coleta porta-a-porta", e com ela a flexibilidade, o informal, todos eles itens e aspectos da carência/precariedade definida como fonte de criatividade e invenção cujo alcance nos remete, nem mais nem menos, aos problemas da humanidade neste século XXI.

A triagem feita já pelo catador que separava minimamente os objetos coletados necessariamente heteróclitos, alguns em fragmentos, outros estragados, outros em bom estado prontos para serem reutilizados, já nos oferecia uma visão trazida pelo catador após sua ronda pela cidade, enquanto ela cidade grande se representava como racionalmente ordenada, ordeira em seus passeios retilíneos, sua limpeza pública.

Consultei "Gestion des déchets et Education à l´environnement". Depois li um pouco sobre a filosofia (como se diz!) do material:

Lixo, resto, refugo, porcaria..., são noções a serem definidas neste campo específico do saber com recortes tecnológicos, antropológicos, filosóficos.

O resto, o que é posto de lado, por vezes para ser esquecido, por vezes contem o sentido original o qual queiramos ou não, prolifera no mundo. De fato, a perda e suas diversas modalidades nos remetem à matéria, o material, sua capacidade de recuperação, volta ao ciclo natural das coisas.

O lixo o que é rejeitado, parte ruim no produto tão bem embalado, antes consumido, agora motivo de nojo, de desprezo. Sabemos confusamente que o lixo pode se acumular, para isso criamos em português o termo lixão na tentativa de isolá-lo no aterro. Até chegar à porcaria que nos faz próximo da natureza na sua suposta baixeza, nos faz reconhecer intimidade com as excreções, secreções, a decadência física, a morte.

O refugo que nos faz dispensar o inútil, o ridículo, o insignificante. Tão pouco que não merece atenção por parte de nosso espírito por hábito tão distante da matéria, da natureza.

A produção industrial, uma vez atingida a dimensão dita de escala, seu processo tecnológico (cego já que desconhece os sujeitos a quem ele se dirige), por vezes, é visto como origem de tudo isso, mas também visto como fonte de soluções mágicas.

Gostaríamos de pensar numa clínica da carência (como orientação de nosso trabalho) como ocasião de reconhecer criatividade e invenção, por exemplo, na construção de um barraco.

A construção de um barraco na favela teria alguma coisa a nos ensinar? Pela sua simplicidade? Haveria uma estética do simples? Ou chegamos ao simples após elaboração cientifica?

De alguma maneira, abandonei essas questões, e anotei:

1. Dissociar os usos e os termos objetivantes que os sobrecarregam, até que uma janela e suas persianas voltem a ser uma abertura para o ar ou para a luz e sua ocultação, ou uma fileira de colunas possa ser visto como um muro, ora aberto, ora descontínuo em certos lugares, assim também uma cerca, uma fileira de potes com plantinhas.

2. Novos usos (G. Agamben): objetos lançados pelo marcado podem nos servir para uso não previsto pelo mercado.

4. Os barracos certamente são construídos de acordo com as necessidades, mas nada impede que uma invariante de forma (inclinação do teto) faça surgir uma constante, isto é, a geometria se faz presente. A anotação decisiva vem agora:

o construtor de barraco reunindo numa só figura a concepção, o desenho seja ele precário ou sumário, a construção, finalmente o uso, tira a Arquitetura de um impasse a que se referem arquitetos entrevistados, já que estes profissionais sofrem da segmentação da sua arte (estereotipada entre concepção, desenho a mão, desenho a três dimensões no computador, construção e usuário, cada operação a cargo de um especialista), a um ponto tal que alguns se voltam para experiências na favela.

Pude refletir com eles sobre a solução (dialética?) do impasse encontrada pelo construtor de barracos. [1]

 

 
4. Uma Clínica para o PSF (Programa de saúde da família)

Duas ou mais pessoas em associação no território será chamada um coletivo.

A Clínica será exercida no coletivo.

Há uma distinção a fazer entre grupo e coletivo. Uma atividade de Grupo (Grupo terapêutico, grupo Operativo) busca justificativa numa certa legalidade, num certo trajeto previsto desde o início (inscrição, pertencimento em virtude de diagnóstico, traços culturais ou físicos) . Os sintomas em Grupos Mono sintomáticos, por exemplo; para entrar no Grupo precisa ter o sintoma. Um Coletivo traz em si uma legitimidade que o justifica. Nosso trabalho, quando ele se vale dessa legitimidade, vai além dos limites inicialmente estabelecidos.

No atendimento coletivo, a legitimação surgida autoriza um dos participantes fazer comentários que dificilmente seriam feitos (com os efeitos que constatamos) na sala do médico ou do psicólogo.

O coletivo trata da subjetividade aqui definida como conjugação de Social e Psicológico.

 

 
Território (A referência aqui é o grande geógrafo brasileiro Milton Santos).

Onde encontrar o território? Território é definido por: nós somos daqui e queremos ficar aqui. O termo território é conhecido na Administração, aqui ele toma sentido especial. Ele pode crescer, diminuir, pode ir além, muito além (como dizia Estamira convocando o além em seu discurso delirante). Na rede, posso lembrar uma sala de espera como um lugar onde há indícios de território. Os gestos, as conversas rolam soltas. A estratégia das falas pouco tem a ver com o "diálogo" travado quando o paciente é chamado na sala de atendimento. De repente, muda o cenário, já não é o território, nem as falas faladas no território.

 

 
O que é Subjetividade?

A subjetividade poderia ser algo próximo do que entendemos como típico? O livro "Macunaíma, o herói sem nenhum caráter" (1928) tem sido lido como sendo típico do brasileiro. Na época (1928), buscava-se definir e orientar o que deveria ser um tipo brasileiro (capaz de manter o país unificado, formar uma nação única ameaçada já pela extensão geográfica). Era a época posterior à chegada dos imigrantes em São Paulo. O estrangeiro era visto como ameaça. O tema (raça, unidade nacional) também estava na moda. Os paises da Europa se inquietavam com o que se preparava na Alemanha com ascensão do nazismo e do fascismo.

Vamos acompanhar o personagem (Macunaíma) com suas contradições, complexidade, mestiçagem, que não se coadunam com uma tipologia. Aliás, o título "herói, sem nenhum caráter" sugere despojamento, inconstância de alma, abandono de significantes identificatórios, assim como atribuições classificatórias.

Essa a indagação que nos orientou na presente pesquisa.

 

 
Perdemos com a subjetividade?

Para a subjetividade, só resta o inevitável, abraçar o destino aconteça o que acontecer? Vamos continuar examinando a questão

Abordávamos a subjetividade através da tipologia que pretende ser taquigrafia da realidade, ícone que pretende resumir a complexidade de um caso.

Macunaíma é o nome dele, dito o tipo do brasileiro. A figura de Macunaíma foi vista como um presumido " modo de ser brasileiro" descrito como luxurioso, ávido, preguiçoso, e sonhador (termos que convém a uma tipologia toda ela comprometida, de maneira nenhuma inocente), caracteres que lhe atribuía Paulo Prado, em Retrato do Brasil (1926).

Vamos passá-lo ao crivo de multiplicidades e variações, para indagar se muitas vezes não passam de estereótipos forjados pelos mitos. Os mitos nunca são inocentes.

A realidade nunca é completa, inexorável. Por isso mesmo que preferimos falar do paciente e seu sintoma que acaba trazendo um suplemento que faz entrar o acaso no universal (da doença). O sintoma do paciente, mesmo submetido á precariedade, à duvida, à incerteza, propicia alguma consistência ao mundo.

 

 
Os tipos não são produzidos pela subjetividade, eles são estereótipos.

Contrariamente à tipologia, preferimos dispensar todos os significantes identificatórios (psicológicos parentais, culturais, ou simples estereótipos) reservando lugar para o real da carência, do traumatismo tal como ele é.

O PSF é o reconhecimento de que existe um território (a ser visitado pelo médico e sua equipe), que o público não é massa, nem classe, mas o coletivo formado pelas pessoas residindo naquele território, naquele beco, naquele lote freqüentemente ocupado por várias famílias.

Há produção de Subjetividade, mesmo em condições desfavoráveis para o surgimento do sujeito. Quando alguém fala, podemos dizer que ele o faz a partir de um ponto de vista, uma posição. Criar condições para o reconhecimento dessa posição subjetiva, (no caso de Estamira inclui o delírio) significa deixar vir sua voz nua e crua, sem garantia de realidade.

Nosso recorte traz caso de homem que queria um atestado que o dispensaria de trabalho por motivo de saúde.

• Social tem a ver com associação, ajuntamento, associação nova que quebra certezas ao introduzir "novos usos" para objetos no campo da solidariedade, familiar, da sexualidade, da língua, da propriedade.

• Uma associação num território será chamada "um coletivo".

• O coletivo dá legitimidade. Nosso trabalho quando ele se vale dessa legitimidade, vai além dos limites estabelecidos. Onde encontrá-la?

• O termo território é conhecido pela linguagem administrativa, mas aqui nós o empregamos de maneira especial. O território pode crescer, pode diminuir, pode ir além, muito além, como dizia Estamira; ele não é limitado como pensa a administração. Território é definido por uma frase: nós somos daqui e queremos ficar aqui.

• Na rede de Saúde mental posso lembrar a sala de espera como um lugar onde há indícios de território. As conversas rolam soltas, os gestos, a estratégia das falas pouco tem a ver com o "diálogo" travado quando o paciente é levado para a sala de atendimento. De repente, muda o cenário. Já não é o território, nem as falas faladas no território.

• Uma vez, (não é costume), convidamos todos os que esperavam na sala de espera para entrar na sala de atendimento. Como eram oito ou nove, cada um trouxe sua cadeira. Era o coletivo e a respectiva legitimação que se instauravam. Um dos pacientes havia anunciado sua queixa e sua demanda: um atestado para afastamento do trabalho. Quando ele entrou na sala, uma mulher a pouco metros, lançou: "Hum um homem tão forte!" ou seja, ainda em condições de produzir filhos e sustentar uma família, assumir uma mulher, dá prazer a ela.

• O homem que pretendia um atestado para ausentar-se do trabalho, desistiu da sua demanda, não disse mais nada.

• No atendimento coletivo, a legitimação surgida autoriza a paciente fazer comentários que dificilmente seriam feitos caso estivéssemos na situação de sala de atendimento. Nesta última, muda a sintaxe na fala, muda o universo semantico-político das frases; perde-se a legitimidade.

 

 
A Subjetividade

A Clínica do PSF é experiência contestadora porque contrapartida para a especialização no momento atual hegemônica na prática médica; contestadora porque contrapartida às diversas orientações na abordagem da psique humana, agora forçadas a uma nova visão em virtude da carência em que vive a população.

 

 
O ACS (Agente Comunitário de Saúde) personagem crucial

A grande novidade trazida pelo PSF está personificada pelos ACS. Pagos como terceirizados, por conseguinte não plenamente reconhecidos, como convém aos que são admitidos sem que o sistema saiba, sem que sistema queira se dar conta. O sistema (já por força do avanço tecnológico que envolve a medicina) só forma especialistas (estudos atuais). A querela generalista X especialista (apoio) passa a ser menos importante quando o personagem ACS a resolve indo além do impasse.

A criatividade advém sem que nenhuma ciência seja avisada. Ele não é técnico, nem tem diploma, ele é agente. O ACS sem nenhuma dificuldade pratica a abordagem pela subjetividade (mistura de Social e Psicológico).

O aviso de praxe quando há visita domiciliar não é constrangimento para o ACS. Ele é uma espécie de informante, visitador Vicentino, (novo) psi da Clínica da Carência, ponte entre o sistema e o povo.

ACS: por quanto tempo?

Logo ele poderá ser recuperado, lotado em algum organograma (diploma, concurso, enquadramento). Mas, no momento atual sua originalidade é assegurada pela improvisação que cerca seu estatuto. Não possuindo diploma (curso superior) ele pode ser visto como alguém sem condições de assimilar a informação, transmitindo a informação de maneira defeituosa (depoimento de aluna na Universidade). Minha observação vai em sentido contrário.

 

 
5. Uma lógica não predicativa

Qual a lógica que sustenta o irregular? Terá que ser uma lógica não predicativa. Onde encontrar uma lógica não predicativa em uso?

a) Vamos encontrar um primeiro exemplo na lógica do conto de Guimarães Rosa "Meu tio Iauaretê ou o caçador que virou onça" no volume "Estas Histórias" (1961).

A teatralização do conto foi levada ao palco anteriormente, aqui ela deu margem para a proposta que trazemos, ou seja, uma Lógica não predicativa, ou em contra partida á Lógica Predicativa, ou Lógica de Predicados.

Vejamos como o espetáculo era apresentado em Globo Rural de Novembro de 2004:

"Meu tio Iauaretê" é um monólogo-diálogo de um bugre contratado para "desonçar" o mundo. Exímio caçador, ele começa a liquidar pinimas e suaçuranas mas, aos poucos vai se identificando com elas, até se arrepender, e passar a protegê-las.

Parou de matar".

Na experiência a que me refiro, Gercino, encenador do conto, e Emerentina Rabelo (assistente social) fizeram comentário após a encenação, trazendo os personagens para nossa situação, já que atendem em uma clínica de Saúde Mental freqüentada por jovens portadores de sofrimento mental, frequentemente em conflito com a lei, em véspera de delinqüência. Disse Gercino (ele mesmo mestre de capoeira): a onça mata para sobreviver, assim também o macuncoso que virou onça.

E os meninos que atendemos aqui no posto de saúde?

E os psicólogos (a quem Gercino se dirigia naquele momento) como vão eles atender alguém que "virou bicho" para sobreviver, tais as dificuldades no seu dia–a-dia, noite adentro, chegando a roubar, até matar para...(Não continuou a frase. Como falar da transformação ao abandonar a lógica da predicação? Essa é a nossa pergunta, a ser levada em conta quando fazemos uma clínica da carência).

b). Uma segunda referência para nós, tem sido a crítica de Ian Hacking à classificação como operação de engessamento das pessoas ("Façonner les gens" no site eletrônico do Collège de France).

Diz ele: acentuar a importância de novos nomes para designar novas formas de trabalho, de novos ofícios, de novas classes sociais, diagnostico, é talvez simplificação excessiva. Não falo de um mito construído tal como no caso de um "pensamento primitivo", mas da potência dos nomes na nossa própria civilização. Dêem um qualificativo comum a alguém, feio ou bonito, e este ou aquele pode passar a ser feio ou bonito.

A conseqüência banal transparece na observação de Nietzsche: o nome das coisas importa mais do que tudo que elas posam ser.

Nietzsche coloca este problema nos seguintes termos: a relação paradoxal entre os nomes e as coisas causa "grande dificuldade". A dificuldade, diz, é de "nos darmos conta". As relações entre os nomes de tipos de pessoas, e as pessoas, são para nós, praticantes do saber psi, também grande dificuldade.

Em princípio, dizemos que as coisas são mais importante que seu nome, mas nós devemos admitir - com consternação - que nomear uma categoria de pessoa é frequentemente problemático, e que é importante para a própria concepção que o indivíduo tem de si mesmo.

c) "Novos usos" foi noção fundamental para nossas intervenções numa Clínica da Carência. O termo proposto por Agamben (no livro "Profanations") é trazido no contexto onde o uso de objetos reservados ao culto e ao sagrado foi fonte de discriminação. As concessões bastavam aos leigos que se satisfaziam com o que restava. Só assim eles se apropriavam (profanação) de partes do animal sacrificado que de início não lhes eram devidas.

Resgatar objetos de um uso de inicio reservado ao sagrado, essa seria a tarefa política que nos incumbe.

Na atualidade, permitir-se uso em nada consentâneo com o marketing seria demonstração de criatividade e invenção de que as crianças dão prova em seus jogos. O consumo desenfreado vai contra esse movimento criativo que se impõe como freio e critica a manipulações de que somos alvo no supermercado e no shopping de qualquer cidade. Uma sigla, um ícone, um lema expostos na logomarca ou grife de uma marca são ocasião para reservar / preservar um objeto cujo uso passa a ser codificado.

Em casas de gente com parcos recursos objetos são aproveitados na cozinha, no quarto de dormir, até na sala. Uma lata, uma caixa, um material especial, cujo conteúdo foi alimento ou outra coisa para a família serão utensílio, adorno. Os brinquedos dos meninos eram fabricados com o que restava dos objetos cujo uso em princípio era reservado.

Há até nome para esse tipo de criatividade que virou termo técnico da antropologia, quero dizer bricolagem. Mas, em vez de "novos usos" por vezes, fazemos crítica feroz quando dizemos que "o enfeite e/ou a decoração é kitsch, pensando com isso desclassificar a invenção".

Em nossos dias, em nossas grandes cidades, jovens infratores fazem por vezes em meio à violência inaceitável, "novos usos" de objetos sociais, culturais, morais, amorosos.

Ao ampliar a noção de jovem infrator agora articulada à idéia de "novos usos", abro horizonte para buscar entender o que acontece com eles em sua forma violenta de vida, e preparo abordagem para a clínica de atendimento do jovem infrator, do jovem em geral com suas maneiras, seu modo de vida atual. Resumindo, eu digo que eles fazem "novos usos".

d) A lógica do perspectivismo ameríndio: situações do tipo "bicho é gente" foi igualmente contribuição importante para nossa elaboração (Viveiros de Castro "A inconstancia da alma selvagem" editora Cosac e Naify).

Tudo se dá como se os índios pensassem o mundo de forma inversa à nossa, consideradas as concepções de "natureza e "cultura".

Cada modo de identificação autoriza configurações singulares (Lógica das Transformações), ao redistribuir os seres existentes em coletivos com fronteiras bem diferentes se temos em mente as fronteiras conhecidas por nossas ciências humanas (Lógica da Predicação).

Limito-me a trazer algumas frases do antropólogo brasileiro, tais como: "... no mundo indígena, identidade é que é uma ausência de diferença, e não a diferença uma ausência de identidade".

Pergunta: em que medida a nomeação/significantes identificatórios estariam comprometidos com a lógica da predicação?
Poderíamos chegar a uma prática política / clínica sem estarmos ancorados na nomeação/significantes identificatórios ?

Sim, é a resposta trazida pela Clínica da carência a partir de Gercino, o mestre e capoeira (sem esquecer Guimarães Rosa, Viveiros de Castro, Ian Hacking, Agamben). Com ela conto afastar julgamentos e opiniões de colegas e/ou instituições encontrados em programas de atendimento ao jovem infrator ou em conflito com a lei. Por exemplo, quando somos interrogados sobre a periculosidade de um jovem infrator.

[O macuncoso de Guimarães Rosa, amigo das onças, também passou a ser perigoso? Indagava Gercino, diante daquele auditório de psi silenciados pelos impasses em que vive nossa prática].

Por tudo isso, chamaria minha proposta Clínica da Carência onde encontrei demonstração de grande criatividade por parte deste público a quem dedico este trabalho. As figuras aqui trazidas 1) Estamira, 2) o catador de lixo, 3) o jovem infrator (grafiteiro-pixador), 4) o construtor de barraco, 5) o agente comunitário de saúde, são eles que apontam para o alcance desastroso dos significantes identificatórios reforçados por uma lógica predicativa, assim como essas mesmas figuras fazem prova de criatividade que se instala uma vez que estes significantes já não contam para nada.

 

 
Notas
1- Agradeço especialmente os professores José Cabral Filho (Escola de Arquitetura da Universidade federal de Minas Gerais) e professor Roberto Eustáquio dos Santos (Projeto Espaços Urbanos Seguros/Prevenção do Crime Através do Desenho Ambiental assessorado por Associação Arquitetos sem Fronteiras e Escritório de Integração – DAU/PUC Minas Gerais).
 
 
 
Kilak | Diseño & Web
2008 - | Departamento de psicoanálisis y filosofía | CICBA