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Consecuencias
 
Edición N° 4
 
Abril 2010 | #4 | Índice
 
A Ingenuidade como Recurso Narrativo e como Abertura para a Contingência
Sabrina Thompson
 

A ingenuidade é um recurso narrativo amplamente utilizado na linguagem do cinema. Muitas são as personagens que "encarnam" essa forma discursiva, fazendo com que a identificação do espectador seja quase que imediata. Supomos e torcemos para que a trama narrativa se dê da melhor forma possível. Tais personagens nos permitem essa suposição e sabemos que nelas estão concentradas a "aventura" que permeia o enredo fílmico. Procuramos, aqui, abordar o que pode apontar uma personagem "ingênua" para si, e, como esse discurso pode engendrar uma abertura para a contingência, na medida que não existe um apego fixo ao falo. Este texto foi elaborado a partir do trabalho do cartel Psicanálise e Arte desenvolvido em Ribeirão Preto.

 

Este ensaio se propõe a algumas interlocuções. Entre filósofos e poetas e entre o cinema e a psicanálise. Ele se dá no sentido de tatear questões para assim despertá-las, deixando sua estrutura no limite do que, para Heidegger, se configurou como saber a diferença entre "um objeto de erudição e uma coisa pensada"[1]. Este texto é uma coisa pensada, engendra-se na medida mesma em que se desvela, não é sobre, mas de dentro que ele emerge. É um texto de mulheres não-todas e que sustentam certa tolice. Ismail Xavier, crítico de cinema de notável precisão, formula algo desta posição ao retomar o movimento vanguardista da Estética da Fome, em seu livro Sertão Mar:

"Da fome. A estética. A preposição "da", ao contrário da preposição "sobre", marca a diferença: a fome não se define como tema, objeto do qual se fala. Ela se instala na própria forma do dizer. A estética da fome faz da fraqueza sua força, transforma em lance de linguagem o que até então é dado técnico". [2]

É sob o significante ensaiar, o que dá margem para o entendimento de algo que não se presentifica como pronto, que esse texto encontra seu lugar.

Para falar de cinema passemos à costureirinha:

Balzac e a Costureirinha Chinesa[3] é um filme que tem como cenário a revolução Maoísta de 1968. O líder Chinês Mão Tse Tung envia jovens intelectuais ao campo para serem "reeducados" conforme o modelo do partido comunista. Nesta medida de reeducação, camponeses pobres e "alienados do saber burguês", devem convencer jovens universitários do grande amor do líder Mao Tsé e de toda a lógica que sustenta sua tirania. Missão que estaria fadada ao fracasso, se não fosse a existência maciça e "tola" da costurerinha chinesa.

"Não preciso saber o nome dela" diz Luo, o jovem intelectual, "Costureirinha lhe cai tão bem". Para Luo e Ma, a costureirinha porta em si o mal irremediável dos camponeses alienados ao sistema político chinês: a ignorância. O fato de somente existir, como se a existência bastasse em si mesma, sem questionar a realidade que lhes é imposta. A costureirinha encarna a ingenuidade do não saber, a doçura de suportar uma castração que nem lhe sabia impingida.

Determinados a instaurar o novo, o estrangeiro proibido dos livros censurados, Luo e Ma se convencem na reeducação do avesso a que devem submeter a jovem costureirinha, inadvertidos de que a destituição da posição do intelectual, que faz da letra mero aglomerado significante, objeto de seu estudo, também estava por acontecer.

Luo, Ma e a costureirinha roubam livros proibidos da mala de um jovem poeta. A costureirinha conhece Balzac. Esse é o ponto de partida para a instauração do desejo de saber da personagem, mesclado ao amor que sentia pela letra pura, pelo som das palavras e pelos dois jovens estudantes.

Decidida a mudar-se da vila onde mora, quando questionada, ela responde simplesmente que foi Balzac quem mudou sua vida. Determinada, como se houvesse sido tocada a partir de um ponto irreversível, a costureirinha entrega seu corpo de fala à contingência da cidade. O desejo de saber, do que antes era apenas antevisto nos aviões que cortavam o céu de sua vila, realizou-se como uma função de despertar. Balzac é o significante que marca a instauração de um desejo de saber novo, operando uma queda de sua alienação ao sistema despótico de Mao Tse Tung, que a apagava em sua singularidade para lhe dar o nome plural de "camponesa revolucionária". Podemos dizer que se Mao Tsé Tung é o significante que a aliena, Balzac é o que opera a transformação. É antes a letra, em sua função radical, que toca uma filigrana da verdade (não toda) de seu ser e que opera a retificação subjetiva que testemunhamos na personagem.

Da prosa à poesia[4] se dá a construção do feminino neste filme, ou seja, do sentido à possibilidade da aposta no non-sense do encontro contingencial.

Costureirinha, ao contrário do que supunham Luo e Ma, parece trazer consigo o saber de que não existe a verdade plena, podendo suportar a angústia de um não saber acerca de si e de sua existência, saber que parece ficar no limiar de sua ingenuidade, ou do que para o outro ressoa enquanto ingênuo. A disputa fálica lhe parece, pois, um engodo: ela não necessita ostentar o saber da literatura enquanto objeto, pois esse saber é constituído junto com sua própria trajetória, podendo a personagem servir-se dele para ir-lhe além, sendo esta construção da ordem de uma invenção particular. Expor-se à cidade é poder suportar o saber de não se saber nada, consentindo com a contingência do grande outro, que pode vir-a-ser um bom encontro, ou não:

"É dessa invenção, dessa fabricação, desse fazer que se trata, tanto na Psicanálise como na Arte. Uma invenção, uma fabricação, um fazer cotidiano. Um trabalho dia -a- dia, caso a caso, no qual a posição do analista, como do artista, através de seu objeto, do seu ser de objeto, dá lugar ao saber, saber fazer, do sujeito, ou do parlêtre, que pode daí advir."[5]

A legitimidade da personagem, assim como a câmera agitada nos filmes de Glauber Rocha, como nos aponta Ismail Xavier, ganha sua vivificação ao sair do tripé para a mão do cinegrafista, sendo um processo que não se instala fora da existência própria de seu autor e de seu intenso trabalho criador. No caso da proposta estética do cinema novo, a imagem não se delineia aos olhos do espectador passivo, sentado em sua poltrona, há que se identificar ao olhar titubeante e angustiado que o diretor dá a ver e consentir com certa "náusea" que o filme provoca. Para a costureirinha, o saber é antes um saber-fazer, que se constitui em sua trajetória, na justa medida que aponta um sentido que toca algo de sua verdade de sujeito.

Da inocência como proposta narrativa:

A inocência é um recurso amplamente utilizado na linguagem cinematográfica e nos permite uma identificação quase imediata às personagens que encarnam esse recurso narrativo. Uma simpatia a-priori, para-além da identificação meramente maniqueístas entre bons e maus. Ocorre-nos interrogar o que uma personagem ingênua aponta para si? E como toda pergunta comporta algo de uma resposta, podemos arriscar que talvez seja a possibilidade de um descobrimento legítimo. Pelo menos é isso que nos mostram as grandes divas "tolas" do cinema neo-realista italiano[6]. Movimento cinematográfico emblemático da ternura e da inocência como forma de consternação e apelo ao público. Ao se pensar em neo-realismo italiano, não há como não se pensar no diretor Vittorio de Sica, especificamente no longa metragem "Humberto D.", onde as personagens não dotadas de um saber previamente articulado, podem encontrar-se com o produto de uma invenção subjetiva.

Em Fellini, com Cabíria, a diva bonachona interpretada por Giulieta Masina, temos ao final do enredo fílmico uma metafórica estrada a ser seguida com uma trupe circense[7]. Sem garantias. È na medida em que não existe o culto ao saber fálico, enrijecido, que podemos supor essas personagens, torcer por elas e prever um "happyend" no qual exista uma possível descoberta. Desta identificação também sabem-fazer os diretores e suas criações:

"Essa personagem se tornou Cabiria, e suas aventuras se tornaram aquelas de uma prostituta que vive como um pequeno camundongo num meio aterrorizante, continuamente esmagada pela realidade, mas que atravessa a vida com inocência e aquela misteriosa confiança. (...) Foi dessa idéia que, finalmente, nasceu todo o filme."[8]

São inúmeras as personagens que da inocência são tocadas pelo desejo de saber e, então, podemos compartilhar de seus descobrimentos e supor a depuração de sua história. É o lançar-se à descoberta que nos captura enquanto espectadores. Surge a partir daí a identificação, que se dá na medida em que as amamos, ou as odiamos, o que dá no mesmo. É o laço transferencial que nos envolve a este ou aquele personagem (qualquer coisa que nos enternece, qualquer coisa que não sabemos localizar) que opera um desejo de compartilhar dessa aventura, que logo supomos onde, ou em quem, irá se desenrolar. No caso das mulheres do cinema neo-realista italiano o amor é mais freqüente, só mesmo os muito rigorosos para não ter uma espécie de consentimento com os desacertos e desencontros dessas simpáticas anti-heroínas. A aposta na personagem geralmente é conferida pelo espectador em grande estilo e, ainda que o happyend esperado não venha em todo seu estupor, algo da ordem de uma abertura para a contingência costuma se presentificar. A partir daí temos o ínicio de uma trama narrativa e do que vem a ser o começo de uma escrita singular.

Agnes, a brecha da interpretação e o surgimento do sujeito:

"Você diz a verdade
A verdade é o seu dom
De iludir
Como pode querer
Que a mulher
Vá viver sem mentir."[9]

Agnes é a personagem central da comédia Escola de Mulheres[10], do dramaturgo francês Molière. Lacan comenta brevemente sobre Agnes em uma curta passagem do seminário cinco:

"Trata-se de um cavalheiro chamado Arnolfo. Vemo-lo entrar em cena, logo no início, com a obsessão de não ser cornudo. Essa é sua paixão principal. É uma paixão, como outra qualquer."[11]

A paixão de Arnolfo, sublinhada por Lacan como a obsessão em não ser cornudo, é o eixo temático que permeia a comédia, e como em toda comédia, muitas vezes, é o equívoco do discurso que nos aponta o recalque, e que, portanto, a faz risível.

Desde a mais tenra infância, Agnes fora ensinada para ser uma total ignorante. Ela é marcada e desejada pelo outro no lugar daquela que porta o mais radical não saber, como total alienada ao saber do outro e, neste sentido: tola, ingênua. Para Arnolfo, o aparecimento de Agnes em sua singularidade ameaça a integridade de sua honra, pois, apoderar-se de seu desejo e decidir sobre sua existência, implica na recusa de toda a "educação" à qual a personagem fora submetida. Tal recusa aponta para a necessidade de uma invenção, o que por si só, para Arnolfo, já se configura como da ordem de uma traição.

"Os velhos", diz Lacan, "sempre cuidaram da educação das meninas e, para isso, até instituíram princípios. No caso, Arnolfo descobriu um princípio muito feliz, que consiste em conservá-la em estado de completa idiotia"[12]

Com a personagem em seu estado de permanente tolice, Arnolfo estaria seguro de que sua honra estaria à salva, mas ao longo da trama algo escapa de seu controle e o enquadramento tão meticulosamente pensado não se realiza por inteiro. Algo resiste e para isso que resiste podemos supor, como nos mostra Lacan, o simples fato de Agnes ser um ser falante, fato irreversível e talvez "insufocável". Uma vez na trama significante, Agnes presentifica seu avesso como o espaço do engodo, e com ele, como nos mostra Escola de mulheres, o vislumbre de não estar colada ao desejo e ao dito do outro. A margem (ou à margem) da interpretação, neste caso, é a possibilidade de um viés narrativo mais interessante e menos empobrecido que aquele oferecido pela personagem de Arnolfo.

"O que nos mostra o desenrolar da história? Poderíamos chamá-lo de Como a inteligência [l´esprit] vem às moças. A singularidade do personagem de Agnes parece haver proposto um verdadeiro enigma (...)- será ela uma mulher, uma ninfomaníaca, uma coquete, uma isto, uma aquilo? Nada disso: ela é um ser a quem ensinaram a falar, e que é articulada."[13]

Para Lacan, o fato de Agnes se situar como um ser de fala, já traz em si o ensejo de uma subversão. Mesmo que alienada ao desejo de Arnolfo, algo da desobediência ao próprio enquadre cultural ("educacional", neste caso) se opera. Agnes obedece literalmente à palavra de Arnolfo, mas já aí podemos supor um equívoco. Este mesmo equívoco, como vimos, deixa entrever algo do desejo de Agnes, enquanto sujeito de sua própria história. Podemos verificar ao longo da peça de Molière o que desse desejo desponta para a desalienação deste grande outro, que a devasta como um vendaval.

Em certa passagem, Arnolfo pede que Agnes atire pedras em seu suposto candidato, quando este vier lhe fazer agrados. Ela o faz, na medida em que nada pode questionar, mas as pedras são utilizadas também com o objetivo de entregar ao galanteador seus recados amorosos. Arnolfo nada pode reclamar, afinal ela havia feito "o que lhe fora mandado". Agnes subverte o enunciado que o outro lhe endereça, obedecendo-o apenas em sua literalidade, mas não em seu sentido. São nessas brechas de sentido, no lugar da fuga discursiva, que ela coloca algo de sua construção subjetiva. Agnes não é tola, mas é somente quando ela parece ser tola aos olhos do outro, é que pode operar de forma mais eficaz.

Podemos, por um esforço de breve conclusão, entender essas "tolas" e "inocentes" criaturas (femmes- que os homens, nas três obras trabalhadas, insistem em "la dit femme" - homofonia, em francês, de "difamme") como mulheres que nos apontam o caráter de semblante do falo, sem, no entanto, difamá-lo, operando de dentro do discurso imposto, com um cálculo possivelmente característico do feminino, fazendo da fraqueza, força[14], na garantia de poderem escrever uma história a próprio punho.

 
Notas
1- Arendt, H. (2008). Homens em tempos sombrios. São Paulo:Companhia de Bolso,p.279.
2- Xavier,I. (2007). Sertão Mar. São Paulo: Cosac Naify Editora, p. 13.
3- Balsac e a Costureirinha Chinesa: Direção: Dai Sijie Título original: Balsac e la Petite Tailleuse Chinoise (2002), Co-produção China/França. Áudio original: mandarim.
4- Como sintetiza Bachelard: "A verdadeira poesia é uma função de despertar". Bachelard, G.(2002). A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes. p.1.
5- Guardado,C.(2008) "Artistas Antena da raça".Arteira, (1):71. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Santa Catarina.
6- O movimento Neo-realista italiano tem por proposta estética uma aproximação da realidade, o mais legítima possível. Boa parte dessa proposta e sua orientação ética/estética são encontradas nos artigos do crítico de cinema André Bazin. Os filmes deste movimento são articulados com poucos cortes e uma montagem quase imperceptível para a transmissão de uma suposta veracidade ontológica. É intenção dos diretores elaborarem uma aguda crítica social e política ancorada no despedaçamento das relações sociais pós-segunda guerra, dando ao cinema o caráter de uma intervenção social. O recorte que faço é baseado em meu olhar e pela forma como elaboro a construção das personagens, bem como o hit que enlaça o enredo fílmico.
7- Para alguns críticos de cinema essa cena pode ser entendida como um bando de jovens brincalhões.
8- Fellinni, F. (1958) "Noites de Cabíria". Cahiers du Cinema, (84):25.
9- Música Dom de Iludir de Caetano Veloso.
10- Molière, J.B. (1977) L´école des Femmes. Paris: Librairie Marcel Didier.
11- Lacan, J. (1999). "Uma mulher de não receber". O Seminário: livro 5: as formações do insconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. p.143.
12- Ibid., p. 143.
13- Ibid., p. 143.
14- Xavier,I. (2007). Sertão Mar. São Paulo: Cosac Naify Editora, p. 13.
 
 
 
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